20 de janeiro de 2012

A minha rua

A rua onde morei, durante a minha infancia e parte da juventude, foi meu mundo mágico e particular.  É sabido que o interior, é o mais rico espaço para ter  uma divertida e bem vivenciada infancia.  Lá atrás, começaram os primeiros desenhos da  cidadania, na socialização, aprende-se o respeito ao outro. Nessa   fase, se dá    o surgimento das fantasias e descobertas surpreendentes. O lúdico, é o abre alas na escala de prioridades, a ser desfrutado intensamente.  Os mergulhos nos  rios, esses são inolvidáveis.  A retina arquivou muitos fatos interessantes, um deles era o Eca,  um apelido familiar.  Sujeito habilidoso, tomou a decisão de   passar  filmes à bordo de um cansado projetor, numa tela improvisada, num terreno desocupado. De pai lusitano, o qual vivia constantemente, assoviando canções  de Póvoa de Varzim, perto do Porto. Um portugues  de poucas palavras,  baixa estatura, e não abandonava  seu indefectível chapéu. Morreu sem saber que foi um artista-benfeitor. Salazarista convicto, Fernando Cardoso de Oliveira, por aqui arribou no Porto do Rio de Janeiro, no dia dois de maio de 1910, a bordo do vapor Barcelona. Os vizinhos o chamavam cerimoniosamente de "Seu Cardoso". Enfim, um doutor  "honoris causa”. Construia com engenho e  arte, a  maxambomba, ou carrosel, para a alegria da petizada. O espírito argentário não preponderava. Os ingressos eram baratíssimos. Tempos de ser, e não de ter. E para completar, na sua residencia, instalado na  parede frontal da sala, um curioso relógio cuco. Uma graça, pois, em diversas oportunidades esperava completar a hora-cheia, para ver a portinhola se abrir, e o pássaro- mecânico, emitir seu cântico. À direita de onde residia, morava um casal elegante. Ela, Elcir Bicudo, bonita, simpática e sempre trajada com esmero. Em contrapartida, ele Wilson Pessanha, seu marido, garboso, sempre com os sapatos engraxadíssimo e cabelo bem alinhado, e untado com a então famosa  brilhantina: madeiras do Oriente. Um verdadeiro dândi. E o caminhão da cor vermelha e marca Reo, para ganhar o pão de cada dia . Rogerinho, filho  manhoso, quase uma retrêta, reside há muito na Holanda, com Dona Isabel. É um violonista de alta categoria, pois estudou violão clássico na Espanha. E tem mais, a filha  Valéria, atualmente vivendo, na outrora terra dos ferozes indios goitacazes. Os piques-esconde eram noturnos, e se misturavam todos, meninos e meninas. A primeira e saborosa manteiga que degustei, era proveniente do leite das vaquinhas da Ilha de Jersey, e quem as processava era o casal Normanda e  Seu Doca. A poucos passos, a fábrica do gostoso guaraná Brotinho, o melhor refrigerante do mundo.  Alcebíades Gomes, era o seu diretor-presidente. Antes da fábrica do guaraná, uma casa se metamorfoseava  num pequeno clube doméstico. Na casa da Dona Ruth e Antoninho, haviam luvas de boxe, jogos de botões, ping-pong, xadrez, e um volei. E os meninos eram bons alunos, todos no dimunitivo, Marquinhos e Paulinho. O caçula dos homens, Carlos Alberto, depois, o  "rebatizaram" de  Beto Suê. Eram também frequentadores, Edson Yasegy, Miltinho,  Julio e muitos mais. Do outro lado, num quintal com muitas árvores frutíferas, destacava-se  o abio, de polpa muito doce e  ciquento.  Essa frutífera,  pertencia a Dona Mariinha, casada com o   Seu Raimundo, um experiente motorista, ou melhor dizendo: um chauffeur de praça. Vizinha da dona Mariinha, a professora Gilda Brandão,  foi uma das primeiras professoras desse condado, orientou  com têmpera e retidão as suas  filhas. No seu pequeno pomar,  um frondoso pé de pinha, ou fruta-do-conde, o qual  "visitava" com alguns amigos, nas noites iluminadas  da lua cheia! "Vis-à-vis" o Educandário Santa Isabel (externato e internato), por lá estudei por um curto lapso de  tempo, nele tive a grata satisfação de conviver com o Andiara Moreira Luz, Mandi e/ou Didi, Luis Carlos Pinto, entre outros contemporâneos. O Educandário era quase um quartel, sob o comando de uma madre, dita, superiora. As religiosas eram introspectivas e  feias. Eram da ordem do mal humor.  E a caridade, um dos pressupostos do santo e teólogo  Agostinho, nelas, certamente, não habitavam essa virtude. Todavia, o Educandário, movimentava o local, pois recebia jovens estudantes, que chegavam das cidades da circunvizinhança.  Elas causavam curiosidade nos rapazes da cidade, na esperança de um conhecimento e quiçá um futuro namoro. Desse cenário fazia parte um boiadeiro, que para ser notado, transformava essa via pública, numa praça de touros, como se fosse a Espanha de El Cordobés. O cavaleiro quase sempre estava entre os condutores do gado. E fazia malabarismos para sensibilizar o público feminino. Enfrentava as vacas bravias, e mordia-lhes o rabo, e outros sabidos truques quase o herói tropical.
Uma outra vizinha, com a  qual tive uma pequena, porém   prazerosa convivencia, possuia  uma  numerosa filharada, era a dos Fontanellas. A viuva Dona Margarida, lider natural, vinda de Marapé, os criou com denodo e amor. Um deles, José enquanto padre, pela vocação e sabedoria, prestou inestimáveis serviços ao Estado do Vaticano. Uma outra familia, tinha vindo de Belém do Pará,  com vários filhos.  Pela amizade travada com os filhos Paulo e Carlos, provei  uma guloseima industrializada, cujo o nome era mandiopã, por sinal, bem saborosos esses biscoitos  mandiopã, que pela fonética, poderá  ter fortes laços com a mandioca, que insistem em chamá-la de aipim. E os Monteiro de Barros? Que descendem do Barão de Paraopeba.  Chic hem ? Se transformaram em exímios doceiros, com destaque para a internacional Goiabada Vera.  Dona Zizi, lider inconteste dos Monteiro de Barros , está a merecer um capítulo à parte. Os  filhos gemeos,  José Cesário e Carlos Orlando, eram idênticos, e todos os confundiam. Inesperadamente, pela primeira vez surge uma camionete Studbaker, de cor preta. Pertencia a um agrônomo do então , Fomento agrícola, órgão do poder público.  Na década de 60, a modesta cidade,  foi seriamente castigada, por uma severa enchente. Foi a maior de todas as inundações, registradas na altiva Mimoso do Sul. As águas subiram silenciosas e rápidas. Apoplexia e impotencia geral, diante da imensa inundação. Os prejuízos foram incalculáveis, pois todos os moradores eram humildes, e viviam enganando as dificuldades. A enchente  penetrou no prédio do Fomento, e se misturou com os defensivos agrícolas, envenenando-a.  Existia um grande movimento, para se salvar  móveis e utensílios dos moradores. Usavam-se barcos, e homens que nadavam buscando ajudar àqueles mais necessitados.  E nessa manobra, um deles era o jovem estudante Ronaldo Silva, exímio nadador, que ao mergulhar, não voltou com vida. Pairou a suspeita, de que teria ingerido algumas golfadas, das águas contaminadas pelos agrotóxicos. Num gesto de solidariedade, os padres estrangeiros -  vindos da terra das mais belas tulipas negras -  abriram as portas da igreja para acolher os desabrigados. Outro fato marcante, foi quando o  do rio-Muqui do sul foi desviado, tirando-lhe uma curva, para aprimorar a fluencia do seu curso. Os caminhões começaram o aterramento. Os enormes GMC's, carregavam nas suas básculas, imensas quantidades de terra. E um deles era dirigido pelo Moacir Rangel recém chegado de Campos, e o seu auxiliar, Hélio Arara.  Participar desses eventos, foi um inenarrável privilégio, meio que, uma sonhadora filmagem, sob a direção do mestre  Federico Fellini.  Existiam dois  campinhos de futebol,  sendo um pequeno e o outro,  maior. As peladas eram diárias e imperdíveis. Os mais velhos sempre desvalorizando os jovens peladeiros. Contudo, a  vida era bela. Mangueiras seculares, em nome do progresso foram erradicadas impiedosamente. Nem o pé de  manga-rosa, foi poupado. A rua da qual estou  me referindo, se chama Doutor José Coelho dos Santos (1863/1923), negro, médico, filho do Mestre Silvestre - escravo alforriado - de São Pedro do Itabapoana. Deputado Estadual por duas vezes, tendo assumido o Governo do Estado na condição, de Presidente da Assembléia Legislativa do Espírito Santo. Graduou-se na Universidade do Brasil, na capital, Rio de Janeiro. Foi o primeiro da turma, e conquistou o premio Torres Homem. Enguanto médico, lutou bravamente no combate a peste bubônica, que se alastrou em Campos(RJ) após a inundação do rio Paraíba, em 1903. Foi membro correspondente da Academia Francesa de Medicina. Pertenceu ao Grande Oriente do Brasil - Loja Maçonica Ordem e Progresso.  Iniciado tal qual, o genio da música erudita, Wolfgang Amadeus Mozart. Sinto-me honradíssimo de ter residido  numa rua, cujo o homenageado foi esse ínclito personagem, que infortunadamente continua anônimo nesse  Brasil de Machado de Assis. "Não digam que isso é passado. Passado é o que passou. Se não passou, foi o que ficou na memória ou no bronze da história " de Ulisses Guimarães.

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