16 de dezembro de 2008

Santa Maria dos Brejos

Essa estória pertence ao ano de 1966, o personagem dessa narrativa, carregava orações escritas num papel qualquer, e creio, não eram poucas essas preces, caligrafadas num papel de gramatura encorpada, o mesmo usado para embrulhar nacos de uma entumecida linguiça de carne-de-boi, comercializadas nas "vendas" dos pequenos vilarejos da região. Momentos antes de ser preso, perdeu as escrituras místicas do cangerê, desaparecendo a proteção dos santos afro-brasileiros e cristãos e afins, perdendo a liberdade e a vid. Foi morto tão brutalmente, como assassinou as suas vítimas. Foi aplicado sem nenhum vestígio de civilidade a Lei de Talião : dente por dente,olho por olho. Recorreu-se sem maiores dificuldades a barbárie praticada na Idade Média, desde a sanguinária Santa Inquisição até as câmaras de gás nazi-fascistas de Auschwitz e Sobibor.
Talvez no ano de 1966, egresso por fuga da Penitenciária de Recife, pois cumpria pena por ter assassinado uma mulher nos arredores de Santa Maria dos Brejos,no Estado de Pernambuco.
O facínora de origem agro-açucareiro, matou de forma injustificável e perversa uma mulher de nome Maria Perpétua dos Santos, tia da Maria Luzia, mulher que rejeitou a sua corte, afogando-a num pequeno riacho.Maria Luzia foi estuprada e lançada no mesmo riacho, porém sobreviveu e o denunciou. Foi preso,julgado na capital e condenado.
Seu nome era Aderaldo Protásio, nome herdado do seu avô, então capataz na Fazenda Cruz das Almas, cujo o dono era ítalo-brasileiro,conhecido como Coronel Arminio Pietá Ambrosio, que nutria pelo então menino Aderaldo ou Aderaldinho, muita simpatia, pois era testemunha da dedicação do pré-adolecente nas pequenas atividades rurais. Aderaldinho, era afro -descendente, de altura acima da média, mãos grandes e calejadas, tinha a cor do ébano, sorriso fácil, sempre a mostrar seus dentes alvos, escovados com os dedos, à moda indígena, com cinzas das madeiras queimadas do fogão à lenha, tal fazia minha avó materna.
Aderaldinho acordava antes do sol raiar, e sabia do seu dogmático dever: encilhava o cavalo baio, montava-o e cavalgava tocando o gado leiteiro para o estábulo para a ordenha matinal.
Seu pai faleceu precocemente de um acidente fatal dentro do curral ao enfrentar o brabíssimo o touro reprodutor da raça zebuina. O Coronel, era metido a sabichão, e se gabava após beber generosas doses da sua aguardente - Olho D'Água - destilada na própria Fazenda , e dizia em alto e bom som, que tinha estudado na mesma escola que Gilberto Freire, respeitadíssimo sociólogo brasileiro. Tinha o hábito de vaticinar, a respeito de Aderaldo dizia assim : Aderaldo vai longe, além de trabalhador, é um autentico - egbenla - em Nagô quer dizer : soldado de Ogum. O Coronel se esforçava para ser um babalaô de meia -tijela ou seja um advinhador.
Aderaldinho,virou Aderaldin e por fim Deraldin,alguns também o chamavam de Deraldo,acabou ficando com dois pseudônimos,tornou-se binomial,quando cumpria pena de 16 anos de reclusão na Penitenciária de Recife.
Os outros internos, ou penitentes o chamavam de Deraldo. Ficou recluso somente cinco anos, e fugiu sem precisar de nenhuma manobra mirabolante, pois naquela época os internos cortavam seus cabelos fora da Penitenciária, pelo menos os de bom comportamento, tal procedimento se operava através de uma pequena e ineficiente escolta. Deraldin estava aguardando um descuido dos guardas, para escafeder-se.O cochilo da escolta aconteceu e o criminoso ganhou a liberdade para continuar a sua praxis, ou seja a sua sina, a sua índole má,em assassinar inocentes.
Começou a traçar o seu plano com Mefístocles, e buscou a vingança torpe por motivos fúteis,inócuos e vazios. Reboninou o seu cérebro e agendou na sua pútrida memória a sua próxima vítima. E se tratava novamente de outra indefesa mulher.
As rejeições registradas nos porões dos seus pensamentos vieram à tona, a palavra de ordem era vingar, era sacrificar as mulheres que não queriam sentir o seu hálito de enxôfre. Há tempos, uma mulher, chamada Dora Maria Tupinambá, numa festa, foi convidada para dançar uma parte com o Deraldin, de pronto agradeceu o convite e não aceitou. Dora Maria passou a ser a "bola da vez" como se verbaliza no jargão da imprensa policial. Mais uma vez o crimoso estupra-a e a mata com requintes de perversidade. Em seguida foge, e inicia-se a sua caçada policial e civil. As casas são trancadas mais cedo, janelas e portas são sustentadas com móveis pesados, os homens não conhecidos pela pequena população são considerados suspeitos, e a maioria das pessoas entraram em pânico. A polícia local mal treinada, e precariamente aparelhada se embrenha pelas capoerias, canaviais, cafezais, caçando-o como um cão hidrófobo. As notícias verdadeiras e falsas se proliferam, se multiplicavam em progressões geométricas, com relação ao paradeiro do assassino.
Outro crime é cometido por Deraldin, dessa vez assassinou um menino cujo o nome era Josias da Silva Conceição, apelidado de Joselito. Morto dentro na casa dos seus tios quando os visitava por ocasião da Festa da Folia dos Reis, no dia seis de Janeiro de 1966. A caçada ao criminoso continuou, a polícia local recebeu reforço da capital para dar combate ao Deraldin. O tempo se esvaia e não conseguiam prendê-lo. Rumores eram ouvidos que o Coronel Armindo Pieta Ambrosio, dava-lhe uma dissimulada proteção, essa suspeição nunca foi materializada.
Informações eram desencontradas e fartíssimas, de todos os tamanhos e formatos.
Eis que no auge, do alto da sabedoria popular o surgimento do imponderável, da lenda, do místico,desdobrou-se na manchete virtual: Deraldin tinha o corpo fechado. Estava conectato com as forças transcendentais do mal. Afirmavam, que acuado pela força policial, metaforseava-se em cachorro, ou em tôcos, ou subia em altas árvores com velocidade de um primata, e de lá, no cume da mesma, funcionava com se estivesse num cockpit,observando o movimento do destacamento castrense.
Certa vez, uma das estórias contadas por testemunhas oficiosos, disseram que a força policialesca ao confrontar-se frente a frente com Deraldin, os homens da lei, disparam suas armas de fogo, e o crimoso saltava magistralmente sobre velhos mosquetões e ultrapassadas metralhadoras,como se fosse uma espécie ninja voadora. Essa saga malévola durou quase vinte dias de horror, era um longo filme de terror, corações e mentes, gravaram para sempre nas suas implacáveis memórias. Nesse contexto, me incluo,por ter vivenciado esse pesadelo na pacata cidade de Santa Maria dos Brejos.
Marchas e contra marchas, na busca do fugitivo, a polícia estava desnorteada, pois Aderaldin tinha sido nascido e criado na região, era um capitão-do-mato, pois conhecia na prática todos os rios, córregos, caminhos, picadas, atalhos, ervas fitoterápicas, era um "connaisseur" da flora e da fauna. Ele era íntimo das matas. Daí advém a dificuldade dos policiais pernambucanos. A gendarmeria pernambucana, era como se fosse turista em Santa Maria dos Brejos. As informações eram precárias sobre o local, mal comparando, igual aos norte-americanos que não venceram a guerra do Vietnã (1961/1973) porque desconheciam o território do país litigante. Depois de perderem milhares de homens, a "ficha caiu": os vietcongs perfuravam túneis, construiram casa-matas subterraneas, e apareciam sorrateiramente e metralhavam os norte-americanos e desapareciam, como num toque de mágica !!! A moral dos soldados foi para o fundo do poço. O Exército norte-americano ficou perdido, e acabou sendo vencido...
Finalmente o assassino foi surpreendido sob a sombra de uma frondosa árvore conhecida popularmente como Pau d'Alho, e recebeu ordem de prisão. Foi manietado com correntes, como um animal. Há quem afirme que êle estaria salvo, se não tivesse perdido o seu olho de boi, ou o seu canhenho contendo as suas orações, a sua mandinga empacou. O babaogê, ou melhor o ariogê - chefe dos mortos - o chamou,e a sua carreira foi encerrada. Virou bosta.
Foi encarcerado na cadeia local.Foi um evento inusitado para aquela pequena comarca, acostumada a viver a sua malemolencia, quase sonolenta onde o sol letárgico, se demorava a se por. Filas intermináveis foram formadas para verem o monstro, agora acorrentado num cubículo, em que momentos antes, era temido, pois,atemorizava, estrupava e matava as suas vítimas. Parte da comunidade davam continuidade a romaria para apreciarem o espetáculo de gosto duvidoso, ou seja,depositar um olhar de ódio, ou de perdão, ou de culpa ou de curiosidade mórbida naquele ser desprezível dentro de uma cela prisional.
Dias e dias se passaram, Aderaldo continuava enjaulado, seus familiares estavam na expectativa de um advogado ou defensor público para proceder a defesa dos crimes praticados. Tal não aconteceu, como é o direito de todo cidadão acusado de cometimento de crime, o direito universal a defesa, conforme a Carta Magna do País, estranhamente fez-se justiça com as próprias mãos - ipsis litteris - pois o assassino foi executado nas dependencias do Estado de Pernambuco. Em resumo, dentro da cadeia pública de Santa Maria dos Brejos. Foi morto impiedosamente, com toda a frieza deu um psicopata, através de um contundente sabre que lhe penetrou, até encontrar o coração. Urrou feito um leão ferido de morte, e seus gritos tétricos pareciam vir das profundezas da geena. Seus lamentos cortavam a madrugada adentro. Morreu densamente banhado no seu próprio sangue. Mais uma noite de torpor. O serviço hediondo estava feito em nome da barbárie, do terror e do Estado falimentado.
Vale o velho e eficaz aforismo : Um erro não pode justificar jamais outro erro. Mesmo com a pena de morte legalizada, nas outras terras estrangeiras, o réu se submete a um juri popular por mais abjeto que tenho sido o seu delito, após consultado ao tribunal do juri, se condenado vai a cadeira elétrica ou uma injeção letal.
Ainda cabendo ao Governador do Estado, no caso dos EUA, a comutação da pena, transformando-a em prisão perpétua ou não.
O autor desse quarto crime, dessa vez é praticado pelo Poder Público, foi atribuido a dois servidores públicos: o carniceiro, digo o carcereiro de plantão e o policial de nome Oscar Virgulino de Souza, natural de Propriá no Estado do Sergipe. Nada foi apurado.Encerra-se essa estória, nada mais do que uma modesta narrativa ficcional.

Nota do Autor : QUAISQUER SEMELHANÇAS COM OUTRAS ESTÓRIAS, É MERA COINCIDENCIA,EXCETO OS FATOS QUE PERTENCEM A HISTÓRIA E FORAM AMPLAMENTE DIVULGADOS,NO MAIS A MESMA É FRUTO DA IMAGINAÇÃO DO AUTOR.

FRASE DO DIA

" É MELHOR SONHAR A VIDA, DO QUE VIVÊ-LA, AINDA QUE VIVÊ-LA SEJA AINDA SONHÁ-LA " Marcel Proust (1871-1922),O Tempo Reencontrado.